
Quis Deus, ou a Sociedade, que uns fôssemos Homens e outros Animais. Mas, se os homens e os animais são considerados Criaturas de Deus, porque é que a Sociedade quis fazer a distinção entre Seres Humanos e Animais?
Quanto mais avanço na idade, mais me apetece inverter os factores e alterar a velha máxima para: quanto mais conheço os cães, menos gosto dos homens.
Sem que nada o fizesse prever, ou talvez não, o Yuri deixou-nos. E deixou-nos, ele próprio, uma grande tristeza, um grande vazio, uma tremenda angústia de quem se sentiu impotente e, tal como nos humanos, uma tremenda mágoa por não ter a ciência, o dom ou a sabedoria, de poder prolongar-lhe a vida tanto quanto ele merecia.
Se fosse um ser humano, diria que ele era mudo. Só lhe faltava falar. Exagero? – Não! Verdade. Esta criatura de Deus tinha sentimentos, como qualquer um de nós. Só que não conseguia exprimi-los. Mas comunicava-os! Não quis Deus, dar-lhe aquela faculdade. Mas nós, os que com ele conviviam no dia-a-dia, sabíamos bem o que ele queria e ele, também, fazia entender-se.
Faltou aqui a palavra saudade, esse inexplicável sentimento tão lusitano, mas ainda é cedo para isso. Vai demorar algum tempo, não muito, para o sentir de verdade. Já hoje de manhã senti a sua falta a dar o habitual “bom dia” de rabo a abanar e de chinelo na boca.
Dormia dentro de casa, como qualquer um de nós. Tinha o seu espaço com todas as condições dignas. Quando víamos algumas imagens na televisão de pura miséria, muitas vezes comentávamos: será que com todas as campanhas que se fazem, com todos os apoios humanitários que se geram, com toda a pretensa solidariedade dos Estados que subsidiam as campanhas, em que o dinheiro corre para todos menos aqueles que precisam, não se conseguem arranjar condições minimamente dignas, tanto quanto um animal como o Yuri tinha?
Comia dentro de casa, como qualquer um de nós. Só não comia à mesa porque não conseguimos ensinar-lhe a comer de faca e garfo. Tinha alturas em que era sôfrego a comer, mas se o mandássemos comer devagar ele também o fazia. E quando lhe dava de comer com um garfo ou uma colher, ele quase não tocava com os dentes no metal, tal era a sua elegância. Comia da mão sem morder. Sorvia a comida. Comida deitada fora? – Não havia lá em casa. Não estou a falar de “restos”, mas de comida. Voltamos às imagens da televisão e, muitas vezes, comentávamos o facto de haver crianças no chamado 3.º mundo que se apanhassem à sua frente uma comida daquelas… Como o mundo é injusto.
Havia uma coisa que ele não fazia dentro de casa: as suas necessidades. Mas era educado ao ponto de “aguentar” que nos levantássemos de manhã para que ele viesse à rua fazê-las. Sempre acompanhado de alguém que lhe levantaria os dejectos, desde que estes fossem largados em local menos próprio. E se essa vontade lhe surgisse durante o dia, era vê-lo levantar-se, dirigir-se à porta e se não conseguisse abri-la (sim, porque ele abria-a), olhava em nossa direcção e, com o olhar (aquele olhar meigo e terno), pedia “como que a dizer”: preciso de ir lá fora.
Já na sua fase terminal, ainda que nós não soubéssemos, dois dias antes de nos deixar, sem ninguém a quem pedir para sair, afastou-se dos sítios normais de passagem das pessoas, foi ao cimo do terraço e aí se libertou da sua vontade. Educação? – Chamem-lhe o que quiserem. Não se esqueçam de que estamos a falar de um cão.
Na véspera da sua partida, de manhã, esperou até quando pode que lhe viessem abrir a porta, não aguentou mais e vomitou mesmo ali. Não no sítio onde, se calhar, pretendia mas fora de casa. E olhou como que a dizer: Desculpem. Noção da situação? – Digam o que quiserem. Continuem a não se esquecer de que estamos a falar de um cão.
No dia em que partiu foi, como era normal, fazer as suas necessidades à rua, embora de uma maneira mais arrastada e, ao mesmo tempo, mais célere e, ao voltar para casa, já não conseguiu passar da viela de entrada. Foi preciso pegar-lhe ao colo e trazê-lo para o local onde veio a dar o último suspiro, enquanto esperava pelo veterinário e pelo seu “velho” companheiro de luta, o Zé Carlos. Parece que esteve à espera que ele chegasse para se despedir com um beijo. Sim, um beijo. E como ele sabia beijar… e quando beijar.
Lá em casa todos nos cumprimentamos, à entrada e à saída, com um beijo. O Yuri tentava imitar-nos. Saltava para nós, tentando alcançar a nossa cara e lamber-nos. Não foram poucas as vezes que cada um de nós ficou com um lábio inchado porque ele nos bateu com um dente, inadvertidamente. Comentávamos, muitas vezes, o facto do “gelo” que existe entre os vários elementos de uma família e perguntávamos: é isto um cão? Não se esqueçam que é dele que estamos a falar.
Quando o Chefe (o Sr. Avelino), começou a ficar mais debilitado, bastou que lhe dissesse uma ou duas vezes que ele não podia saltar para ele porque o desequilibrava, para isso deixar de acontecer. Mas pensam que isso o desmoralizou e que deixou de o cumprimentar? – Enganam-se. Assim que pressentia a sua chegada, era vê-lo “dar ao rabo”, ir buscar o “brinquedo” ou um chinelo para receber o seu habitual afago de bons dias. Posto isto, sentava-se paulatinamente à espera da sua torrada matinal (ou sopas de pão em leite), e do afago na cabeça e no lombo.
Há pouco tempo o Chefe esteve hospitalizado e ele sentiu a sua falta. Notava-se no seu gesto meigo a olhar em redor não o encontrando e descansava o focinho em cima das patas dianteiras e ficava com o seu olhar terno fixado na sua cadeira de encosto. Quando lhe dissemos: o Chefe vem hoje, foi ver aquele gesto rápido a levantar-se e dirigir-se à porta e ficar naquele frenesim do reencontro. Que alegria. Na noite que antecedeu a sua partida, esteve sempre deitado aos seus pés como que a despedir-se. Já pressentia?
Que raiva não termos pressentido… mas nós somos seres humanos. Eles… são criaturas de Deus. Animais?... Mas o povo não diz que os animais pressentem as desgraças? Que dor nós não sermos como eles.
Se batiam à porta ou, mesmo que não batessem, ele pressentisse que alguém se aproximava, ladrava. Fazia o seu papel. Mas ai de quem entrasse em casa e não o fosse “cumprimentar”. Ele sabia que fazia parte integrante da família. Também tinha de ser cumprimentado. Depois disso sossegava. Não sei se lhe devo chamar “educação”, mas que tem que se lhe diga, isso tem. Saber estar? – Conheço muito quem nem sequer tenha esta postura.
No último aniversário do Zé Carlos, como é normal, cantámos os parabéns. Quando o Zé Carlos apagou as velas o Yuri começou a ladrar e não se calou enquanto não cantámos os parabéns de novo. O que é que isto quis dizer? – É inexplicável. Não se esqueçam de que continuamos a falar dum cão. Um cão muito especial, mas um cão.
Como diz o Zé Carlos no seu blog e no facebook, o Yuri foi uma lição de vida. Foi, não. É! Todos aprendemos com ele. E que lições nos deu. Até na “partida” foi digno. Podemos falar de dignidade? Podemos pois. Não podemos, porquê? Por se tratar de um cão? Há por aí muita gente que é bem pior que animais e nem sequer um porte digno tem. Maugrado algumas investidas de estranhos, na tentativa de o denegrir (ou à raça), o Yuri teve sempre um porte digno. Nunca prejudicou ninguém. Dizem que os cães são a imagem do seu “dono”. É verdade. O Yuri teve sempre o porte do seu “dono”. Justo. Humilde. Preocupado. Amigo. Solidário. Companheiro. Cooperante. Bom. Calmo. Paciente.
Sim. O “dono” é tudo isto. É um tipo normal. Se calhar o anormal era o Yuri e é dele que continuamos a falar.
Como devem ter reparado, nunca falei de morte, até aqui. É propositado. A vida é uma passagem. Foi isso que aconteceu ao Yuri. Se o Yuri fosse um ser humano a sua idade rondaria os 70 anos. É esse o cálculo científico que se faz. Uma relação de 1 para 7. Atendendo à actual estimativa de vida, pode considerar-se que ainda estava aí para durar. Estava agora a começar a gozar os seus primeiros anos de reforma, antes que venha o Governo e altere o ponto crítico. Mas Deus não quis e levou-o a viajar mais cedo. Achava que ele era bom de mais e fazia falta na sua equipa.
É assim que o vou recordar: longe de nós mas sempre presente. Vou recordar quando a “dona” (a Belinha) lhe ralhava e o castigava mandando-o deitar na sua cama. Ele obedecia. E depois, “pata ante pata”, vinha, deitava a cabeça no regaço dela, lambia a mão e olhava com aquele olhar de quem sabia que tinha feito mal mas que não a conseguia deixar indiferente. Se ela não reagia, para lhe mostrar que estava zangada, ele enfiava-lhe o focinho debaixo do braço e obrigava-a a fazer-lhe uma carícia. E lá vinha o abraço e os beijinhos e a lambidela de desculpas. Quadro difícil de imaginar, não é? Estamos a falar de um cão, lembram-se? Nas escolas não há esta humildade de pedir desculpa quando se viu que se errou, apesar dos “castigos” ou das chamadas de atenção dos professores.
Se fosse humano, o Yuri seria um Gentleman. Como é uma Criatura de Deus, desculpem-me o estrangeirismo, e nem sei se a palavra existe, mas gostaria de o recordar como um Gentledog.
Quando me bater aquela saudade de que vos falei ao princípio, então passearei com o Yuri numa qualquer página deste jornal a reviver a nossa sã convivência em comparação com a “sociedade”, cada vez mais podre, em que vivemos. Por agora quero recorda-lo a dormir serenamente. Foi assim que me pareceu quando o “deixei” partir.
Dorme em paz Yuri.